A história que não quero contar em 2034

Estou grávida. Mas o que mais ocupa minha cabeça são as eleições de segundo turno no Brasil. Fico imaginando. Pensando que historia vou contar para minha filha sobre o ano em que ela nasceu e os que seguiram. Se as pesquisas estiverem certas e se os planos de governo e palavras dos candidatos forem de confiança, o que os nossos votos de hoje reservam para amanhã?

Talvez seja a maternidade. Talvez seja o mar de ficção sobre o passado e o presente que movimentam essas eleições. Talvez seja o medo do futuro, que também me pegou. Qualquer que seja a razão, ando pensando para além de hoje. Ninguém tem bola de cristal, mas as promesas que escuto sao revestidas de impacto potencial e podem indicar em que direção cada capitão quer guiar este barco. Tem algo de poderoso em imaginar, a partir das palavras de hoje, o que poderia ser o amanhã, porque hoje tudo ainda é ficção. E pode mudar.



Penso em minha filha e chego a outubro de 2034. Ela já pode votar. O Brasil vai às urnas pela quarta vez depois daquela fatídica eleição. Tento lembrar onde estávamos e explicar para ela o que aconteceu de lá para cá.

Lembro da crise, que àquela altura já fazia uns quatros anos. Junto com retrocessos econômicos, escândalos de corrupção de inspirar Hollywood e problemas graves em bem-estar: volta da febre amarela, aumento da mortalidade infantil e no número de homicidios, crises carcerárias e perda do nosso símbolo maior da memoria - o Museu nacional. O cenário do Brasil naquelas eleições se teceu por muitos fios. Cansaço da população por ter um mesmo partido no poder por 14 anos, queda do preço internacional do petróleo, corrupção generalizada, um impeachment por razões que a maioria nunca chegou a verdadeiramente entender, e medidas retrógradas de um presidente com 4% de aprovação. Internacionalmente, discursos nacionalistas e conservadores cresciam, junto com o crescimento do uso de mentiras como regra do jogo político. Vivíamos o inicio da pós-verdade. Também era parte daquele momento as redes sociais, que colocaram o programa eleitoral e os debates na estante para fortalecer o "voto de culhões", pautado por memes, videos, textinhos e textões que conectavam um nome e um rosto com a emoção do eleitor. E a principal das emoções era o medo.

Movidos pelo medo de ter seu pequeno mundo ameaçado, seja pela violencia, seja pela crise econômica, seja pela liberalização crescente de tudo o que fosse diferente, a maioria dos brasileiros votou pela mudança, ainda que fosse uma mudança inspirada no que um dia já tínhamos deixado para trás. Elegemos a sensação de controle. Elegemos os memes que nos faziam sentir assegurados por armas, pela manutenção do status quo social e por enviados de Deus.

O presidente eleito esteve no Poder um bom tempo. As investigações de corrupção da Era PT continuaram e dezenas de políticos da velha guarda foram presos. Já as investigações do governo vigente não eram necessárias, porque todos eram militares e, portanto, corretos. Qualquer ativista que tentasse desvirtuar a realidade seria preso e, se necessário, torturado até que confessasse o complô contra o governo democraticamente estabelecido. 

As exportações agrícolas cresceram espantosamente por três anos, até que os  mercados internacionais começaram a impor barreiras não tarifarias por associação da produção brasileira com desmatamento e violação de direitos humanos. Os relatos de suicidio em massa e violência em povos indigenas eram crescentes, e como consequência Terras Indígenas começaram a ser extintas para dar lugar ao progresso. O desmatamento da Amazonia cresceu exponencialmente, numa incessante busca por mais terras para produção. Enquanto isso, fazendas mais ao Sul enfrentavam secas sem precedentes, fruto do proprio desmatamento e dos impactos das mudanças climáticas. Era uma espiral que mostrava como o patrimônio natural do Brasil pautava a agricultura. Só que na direção oposta ao desejado.

Nesse período, também reduziu muito o número de homossexuais no Brasil. Os mais afortunados emigraram e outros se esconderam.  A educação ficou mais desigual. Abriram algumas escolas modelo, exclusivas para crianças aptas a receber conteúdo de ponta e educar-se segundo a disciplina militar. Para financiar esse modelo, centenas de escolas publicas fecharam, dando lugar a postos de atendimento escolar, aos quais os alunos compareciam uma vez por semana para pegar materiais e estudar em casa, sob tutoria de suas mães. Merenda escolar deixou de ser alvo de corrupção, porque quase se extinguiu. Alguns se queixaram do peso que significou às economias familiares, mas sem razão, porque o décimo terceiro do Bolsa Familia foi implementado e poderia ajudar a suprir esse custo adicional. Finalmente, tudo fazia sentido. As mães poderiam ficar tranquilas em casa educando seus filhos com o material de ponta dos postos de educação e ainda recebiam 13 salários por isso.

Uma grande vitoria foi a redução na taxas de homicidios violentos. Com a população armada, já não se consideravam atos de legitima defesa como violência intencional e todos atuavam em defesa própria. A sensação de controle existia, mas não a segurança, a liberdade, nem as oportunidades.

O número de mulheres na política caiu, assim como o de deputados e vereadores negros, pobres, indigenas, homossexuais e transexuais, porque deixou-se de falar de política nas escolas. As eleições se repetiram depois de 4 anos, mas sem observadores internacionais e com acompanhamento de militares para assegurar a soberania nacional.  O "fake news" deu lugar ao “fabricated news”, que eram as noticias fabricadas à medida para cada eleitor, segundo o que quisesse escutar.

E assim seguimos. Até que, quem sabe hoje, nesse outubro de 2034, quando minha filha vota pela primeira vez, a nova geração consiga driblar a inteligencia artificial e votar fora do controle do Big Brother. Votar pelo país que queremos ser, de verdade.




Volto a outubro de 2018. Preocupada. Torcendo para que não seja essa a história que estejamos escrevendo. Torcendo por outro futuro. Torcendo por promessas e projetos que nos façam seguir mais livres, mais educados, mais sustentáveis, mais democráticos, mais humanos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Vc tá grávida mesmo?
Meus parabéns Paula!
Sei que há temores sobre o futuro, mas construiremos nossas esperanças também.
Haverão opções de outros rumos e histórias, tenha fé...