Latinhas como Oportunidade

Faz cinco minutos deixei de olhar latinhas como oportunidades para voltar à minha realidade que, essa sim, é à parte.
Ontem à noite passei horas na frente do computador buscando qualquer artigo, algum relato que mostrasse como a necessidade dá lugar à criatividade. Buscava histórias como a que conheci há um tempo atrás - Um senhor, desempregado, que se adaptava ao tempo para conseguir o dinheiro do hoje. Quando fazia Sol, lavava carros; quando chovia, dava carona de guarda-chuva por R$1,00. Ele me explicou: “A gente tem que ser criativo e dar um jeito”
A partir daí nasceu a vontade de falar sobre aqueles que entendi como “inventores de oportunidades”. Mas o Google não me deu nem uma pista. Fui dormir esperando que a noite me trouxesse alguma idéia de como poderia encontrar histórias que ilustram a criatividade que surge quando se tem necessidade.
Hoje de manhã, domingo de Sol forte, foram se mais algumas horas de pesquisa em vão. Então lembrei do que diz o livro que estou lendo – às vezes é preciso mudar de estratégia. É isso. Preciso ir para a rua. Ver, buscar, observar histórias. Podia ir para o interior do Nordeste... Mas estou na capital do Brasil. Há de haver histórias aqui também... Feira da Torre – é para lá que eu vou!
Barracas de todos os tipos de coisas. Bandejas feitas com grãos, chinelos de lona, caixas, bonecos, roupas, colares. Isso sem falar nos ambulantes com frutas, no senhor que vende carrinhos de madeira, nos palhaços com brinquedos, no carrinho que toca música para chamar a atenção dos que passam para o vendedor de CDs. Por todo o lado, a prova de gente que dá um jeito e faz uso da criatividade para conseguir o que a minoria tem – oportunidade de uma vida digna.
Mas, quero mais do que ver o já sei que existe. Talvez escutar histórias e muitos detalhes, talvez contá-las, talvez ouvir o que toda a gente tem para dizer. Na verdade não sei o fim. Começar por onde então?
O Sol estava quente. Precisava beber alguma coisa gelada para ver se as idéias aconteciam. Sentei na sarjeta com uma lata de Coca e observava o vendedor de pipas. Alguns minutos se passaram e uma senhora chegou me perguntando se minha latinha estava vazia. Não estava, mas lhe entreguei. Vi então uma oportunidade. Estava ali uma mulher que conhecia tudo o que eu queria entender. A distância agora podia diminuir com uma pergunta. Resolvi então explicar meu interesse e atirei: “A senhora conhece histórias de pessoas que tem que usar a criatividade porque não tem emprego?” “Conheço só a minha. Sou viúva e depois de 32 anos casada não recebo nenhuma pensão.” Me explicou que catava latinhas para pagar a conta de luz e que durante a semana tomava conta de duas crianças de graça. “Minha filha diz que sou boba. Que a gente é que precisa de ajuda. Mas Deus vai ajudar. E para receber a gente tem que dar também.” Simples, íntegra, me contou: “Minha filha acha que catar latinha é vergonha. Mas acho que não é não. Vergonha mesmo é roubar”.
E eu que esperava escutar alguma história mirabolante e meio cinematográfica, percebi a força e a coragem daquela mulher para “dar um jeito”.
Alguns minutos depois estava andando pela feira com um saco de lixo enorme à procura de latinhas. Não sabia muito bem por onde começar. Nas mesas das pessoas que comiam no setor de alimentação havia algumas. O jeito era perder a vergonha, interromper as conversas e perguntar por latas vazias. Não preciso dizer o olhar estranho que me direcionavam. Loirinha, arrumadinha, bolsa da Uncle K. O que essa menina quer com latinhas? Mesmo assim recebia ajuda. Alguns chegavam a guardar o que estava vazio para me entregar quando passasse outra vez. Outros esvaziavam suas latas ainda cheias para me entregar. Engraçado pensar o quanto essas atitudes me surpreenderam. Engraçado também o quanto a sensação de sentir o saco cada vez mais pesado se transformou em um prazer Amelie Poulain...
O Sol estava quente. Andava de um lado para o outro tentando expandir a estratégia para conseguir mais latinhas. Comecei a olhar dentro das latas de lixo. Não queria colocar a mão lá – meio nojento! Mas seria mais uma latinha – não podia deixar a oportunidade passar por vaidade.
Comecei também a conversar com outros ambulantes. Quando nos cruzávamos em meio à nossa jornada rolava aquela troca de sorrisos como quem diz “Hoje o Sol está forte, né? Mas temos que dar um jeito.”
Com os outros catadores a relação era um pouco diferente. Todos buscávamos o mesmo recurso escasso e ganha quem chegar mais rápido. Para piorar, ainda competíamos com os donos das barracas de comida, que também juntam o material para vender. Aí comecei a entender de onde surgem as idéias criativas. Comecei a pensar como poderia desenvolver uma estratégia para conseguir as latinhas antes dos outros. Sinceramente, me senti egoísta pensando nisso. Queria que houvesse latinhas para todos! E não duvido que haja se pesarmos na quantidade de churrascos que aconteciam enquanto nós catávamos na feira. De repente se todos os que estavam ali comendo juntassem latinhas durante a semana e trouxessem no domingo... Mas isso exige muita consciência ecológica, solidariedade e zero preguiça. Não, não daria certo...
Passaram-se duas horas, meu vestido já estava molhado de suor. Encontrei Dona Maria para passar-lhes as latas que havia conseguido. Amassamos todas, juntamos em um saco só. Ela o levantou, como quem quer sentir quanto havíamos conseguido. “Quantos quilos, Dona Maria” . “Uns dois ou três. Se forem três, são R$9,00”.
NOVE. NOVE Reais.Depois dali ela ia para a porta de um show continuar o trabalho. Mas eu, com uns 50 anos há menos, já estava cansada e resolvi ir embora escrever.

8 comentários:

Anah disse...

Só você mesmo para se meter a catar latinhas debaixo de sol! Um ótimo exercício de humildade. To precisando aprender contigo. Sobre mais histórias criativas, conhece a Dilma, ambulante da praia na altura da Vinícius? Ela também se adapta ao mundo com criatividade. Vende passadas de protetor e bronzeador, aluga óculos escuros e chapéus por um dia de sol entre outras... Já comprou até apartamento com as economias, acredita? Minha mae adora ela, se quiser procuro saber o contato. Eu sei que ela tem um esquema de trocar reais por dólares para conseguir economizar. Continue a fundo na pesquisa. Os esquemas berlinenses também sao basta criativos - schwarze Markt! hihihi beijocas
ana

Rachel e Daniel disse...

AMO VCCCCCCCCCCCCCC
lindaaaaaaaaaaa

Anônimo disse...

Paulinha,
eu não sei se falo dessa história buscada, contada e fantástica...
eu não sei se falo do sofrimento desse povo que esquece a vergonha, o nojo o ego para continuar vivendo...
eu não sei se falo da bondade concentrada nos mais humildes que sem ter dinheiro pra pagar a luz ainda olha crianças de graça para os outros...
mas quero falar a todos sobre essa pessoa sonhadora - e que concretiza...
sobre essa pessoa de idéias com tantos questionamentos - mas que busca a fundo as respostas...
sobre essa pessoa humana que doa horas da vida em razão do outro...

YOu may say that I am dreamer,
But I am not the only one,
I hope some day will join us
And the world will be as one.

Anônimo disse...

Paula! Que história linda. É bom as vezes se colocar no lugar dessas pessoas que lutam pra sobreviver. Isso é lindo, não apenas por nos fazer sentir na pele as dores dos que penam por algo que já se tornou axiomático para as nossas mentes aristocráticas, mas principalmente porque nos livra de sentir a leveza maldita da pena. Não a de galinha. Mas a da alma pequena. Essa falsa compaixão, travestida de sensibilidade humanitária, que os que carregam a culpa da negligência ainda se preocupam em demonstrar para fazer constar nos altos. Eu digo isso porque eu mesmo me sinto assim muitas vezes, me apoiando nesse falso esteio da compaixão aliada à incapacidade de fazer mudar. E só quando eu estou realmente vivendo essa realidade dos excluídos eu posso ser maduro. porque a compaixão não é um sentimento nobre, aliás ela pode ser muito cruel. Quando milhões de pessoas assitem inertes ao sofrimento de bilhões de outras pessoas, ancoradas apenas por essa compaixão, ela é cruel e enganadora. não é degradante catar latinhas. Poderia ser até uma profissão muito bem vista pela sociedade. Se eles tivessem consciência do bem que eles fazem pra natureza e do quão importante é fazer bem pra natureza, talvez se pagasse melhor por essa profissão.E tem gente que realmente é feliz assim. O verdadeiro sofrimento se esconde muito além da pele. Tornar todos os seres iguais, esse deveria ser o verdadeiro desafio. Nossa, eu to escrevendo demais. preciso fazer um blog! hehe =) Linda sua atitude Paula. De abraçar uma causa sem abraçar uma identidade. Eu queria muito cooperar, mas infelizmente eu sou um péssimo realizador e preciso de ajuda nisso. Mas posso contribuir com idéias e ideais. Vou começar com uma. A gente podia começar a esboçar projetos pra guiar os ricos que queiram ajudar as pessoas que precisam. Claro que pra isso a gente teria que ter uma boa divulgação. E pra isso a gente teria que ter um portal conhecido que servisse pra divulgar essas coisas. Paralelamente a isso, nós poderiamos fazer um bolão todo mês pra tentar conseguir recursos próprios pra esses projetos que nos descreveríamos. Alguns milhões serviriam. Já conhecidos, nós faríamos um ranking de entidades reconhecidas nas quais os que contribuissem pudessem confiar que o seu dinheiro fosse bem empregado. O principal mesmo seria convencer todo mundo a fazer um pouquinho. Caramba, antes de eu escrever essas idéias pareciam geniais. Agora parecem uma descrição pobre do Criança Esperança. Mas tudo bem. O segredo é nunca deixar de agir. Me inspirando em você Paula, eu vou criar um blog pra divulgar pequenas idéias. Quem sabe a gente faz nascer um movimento virtual disso tudo.
Beijos e obrigado pela história.

Anônimo disse...

Paulinha!
Vc é demais, adorei a história, e pensar... e pensar, e pensar...

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Paulinha!
O que é isso???? Você é uma cronista nata!!!
E eu nem sabia que, além de todas as suas qualidades, você ainda tinha essa...
O mundo é todo seu, minha querida.
Você pode conseguir tudo o que quiser!
Beijos,
Tia Verinha

Anônimo disse...

Ah, sim, esqueci de contar sobre a história que ouvi, nesse Carnaval, do cara que, em meio ao Bloco do Bola Preta, alugava bueiro por 50 centavos para aqueles que precisavam fazer xixi entre uma cerveja e outra, e não encontravam um banheiro por perto. Os detalhes, eu não fiquei sabendo: se colocou algum tipo de tapume, se jogava desinfetante ou outra coisa que o valha. Mas deve ter conseguido um bom pé de meia...