Sobre fronteiras e ternos fora de moda


Era um dia quente e úmido, como devem ser todos os dias na fronteira Amazônica do Brasil com a Bolívia. Eu estava ali, entre Rondônia e Beni, para um seminário sobre o impacto das enchentes do Rio Marmoré nas duas cidades irmãs – a brasileira Guajará-Mirim, onde acontecia o seminário, e a vizinha boliviana Guayaramerim.

As atividades da manhã tinham terminado e só recomeçariam à tarde. A agenda  do evento dizia: 1 hora para almoço e 30 minutos para tomar banho. Eu tinha fome e um dilema: comer ou despistar-me. Aquele era meu único tempo livre na cidade e eu queria aproveitar para conhecer Guajará-Mirim. Desde que chegara, todos os moradores me falavam do outro lado do rio: “Vir a Guajará e não atravessar para a Bolívia não é vir a Guajará”. Lá tudo é mais barato - diziam - o povo vem de toda parte do estado para cruzar a fronteira e comprar bugigangas.  Então, era isso que eu iria fazer. Sair de Guajará para entender Guajará.

Comprei um pão-de-queijo e uma latinha de refrigerante para tapear a fome e pulei no primeiro barco saindo para o outro lado do rio. Salva vidas postos, me sentei no último banco, concentrada para sentir o vento batendo no rosto, engolir o pão de queijo e não derramar o refrigerante no meu vizinho – tudo ao mesmo tempo. Meu cabelo voava, minhas mãos se embananavam e um desconhecido ao meu lado me dirigia a palavra. Era boliviano, mas falava um português correto gramaticalmente. Trajava um terno fora de moda, com a bainha longa, o corte sem corte e as cores opacas. O papo em nada me interessava, mas ele insistia em saber quem eu era e o que eu fazia ali. Fui monossilábica, mas ele insistiu no contato durante todos os cinco minutos que durou a viagem.

Guyaramerim, departamento do Beni. Enfim, chegamos! A essa altura, eu já sabia que o desconhecido era Jesus Suarez, professor da Universidad Autônoma do Beni. Havíamos estado no mesmo evento, mas eu não notara. Morador nativo da pequena cidade em que estávamos, aprendeu o  português em Brasília e estava ávido por praticar. Mesmo morando vizinho ao Brasil treinava pouco.
Jesus Suarez me ofereceu mostrar a cidade. Eu recusei, claro. Tinha só uma hora para estar pela primeira vez na Bolívia e não queria desperdiçar com papos sem graça. Me despedi de Jesus Suarez, tirei algumas fotos do pequeno porto e segui para a rua principal.

A rua era fácil de entender. Loja atrás de loja e toldos azuis cobrindo as mercadorias penduradas em araras expostas nas calçadas. Minha uma hora seria isso - shopping. Disfarcei minha decepção e tentei me distrair com uma lista de pessoas a presentear com coisinhas industrializadas da fronteira, mas não cheguei muito longe – outra vez Jesus Suarez me interrompeu. Desta vez estava dirigindo uma motinho e me convidou para subir na garupa. Eu hesitei. Subir na moto de um desconhecido em país estrangeiro e desacompanhada pode ser classificada prática de risco. Considerei isso, mas olhei para os toldos azuis e subi na garupa.

O passeio começou pela universidade e a maçonaria. Passamos  de moto pela frente dos dois prédios e Jesus Suarez explicou o que significavam – no prédio à direita, a universidade, ele leciona matemática, finanças, estatística e cosmo visão.  No prédio à esquerda, a maçonaria, tios dele participam de reuniões secretas.

Estacionamos a moto bem perto dos prédios e nos dirigimos a um terceiro lugar, do outro lado da rua – o Palácio da Cultura. Jesus Suarez é membro na diretoria e conhece o palácio em detalhes. A fachada do prédio era relativamente grande e muito decorada com pinturas e esculturas. Ao entrar,  no canto do hall de entrada, um piano velho, de madeira puída e esgarçada, chamou a atenção de Jesus Suarez. “Este piano é dos anos 1800s!” – contou.

Seguimos para o hall principal. O salão tinha cadeiras dispostas em formato de auditório e um palco grande à frente. “Ano passado o Ballet Bolshoy da Rússia dançou ali”, pavoneou Jesus Suarez, apontando para o palco. As paredes laterais do salão estavam tomadas por quadros com fotografias de homens e algumas mulheres. No total, deveriam somar mais de 200 quadros em tamanhos e molduras variados. “São as pessoas importantes de Guayamerim”, me explicou Jesus Suarez – “aquele ali no centro, por exemplo, é o mecenas que criou o palácio. Era um grande comunista!”

Chegamos ao terceiro e último cômodo do palácio - a biblioteca. Jesus Suarez me guiou pelas quatro estantes de livros com um orgulho semelhante ao de um pai por filho. Citou clássicos da literatura boliviana e um grande poeta de Guayarámerim. A vibração nos seus olhos era emocionante. Me instigou a conhecer as letras da região, mas esclareceu que eu teria que comprar as obras pela internet. Quando já não havia o que comentar, silenciou e me guiou para a saída do Palácio.

Voltei para garupa de Jesús Suarez. A hora estava avançada e ele ainda queria dirigir pelas ruas, mostrar a segunda praça (a primeira já havíamos visto) e me levar a um resort na beira do lago artificial. Partimos.

As ruas de Guayarámerim me lembravam outras pequenas cidades da América Latina. Muitas motos e bicicletas, avenidas não muito largas, casas e prédios baixos. Observava esse perfil comum quando uma placa grande me chamou atenção: “English Pub”. Antes que pudesse falar qualquer coisa, Jesus Suarez apontou para a placa e disse:
       “Ali é a minha casa”.
Eu ri. E ele completou:
- “Ali ao lado minha esposa vende comida”.
Eu ri mais:
- “Você só pode estar brincando.”

Ele achou engraçado eu achar engraçado e me ofereceu mostrar por dentro. Paramos a motinho na frente do portão e entramos. O salão era um pouco escuro, amplo e estava visivelmente bagunçado da noite anterior. Tinha a estrutura de um galpão. Algumas mesas ocupavam o amplo espaço e as cadeiras repousavam sobre as mesas com os pés para cima. Na parede do fundo, um painel feito com capas de vinil decorava o pub inglês. No mezanino, uma whiskeria.

A filha de Jesus Suarez nos acompanhava nessa visita domiciliar e confirmou toda a história. O professor  de finanças e cosmovisão, motoqueiro e diretor do Palácio de Cultura, gerenciava um pub inglês e tocava rock aos finais de semana. Não havia mais dúvidas – eu tinha preconceito por ternos fora de moda e Jesus Suarez descontruía meus conceitos. O cara era uma lenda.

Voltamos para a moto, passamos pelo resort, corremos as ruas, e antes de completar uma hora de passeio, Jesus Suarez me deixou de volta no pequeno porto. Eu me perguntava o que mais poderia acontecer, mas foi simples. Jesus Suarez escreveu seu telefone em um pedaço de papel, frisando que  ligasse quando quisesse visitar o pub em um fim-de-semana, me deu um abraço e foi embora.

Quanto a mim, agora já posso dizer que conheço Guajará-Mirim e ando por aí buscando ternos  fora de moda. 

Um comentário:

Vivian Ellinger disse...

Quanta sensibilidade! Lindo!