Uma história de
adaptação, três perguntas e um desejo
Adaptar. A espécie que se adapta,
sobrevive, porque tem os recursos e as estratégias mais flexíveis para viver em
condições alteradas.
Sempre achei adaptação uma palavra
poderosa. Nos complexos debates sobre mudanças climáticas, é um termo singular,
porque é intuitivo, se entende fácil, é língua de gente, e não de especialista.
Para um futuro que será, no melhor dos cenários, 2°C mais quente e muito mais
intenso em eventos climáticos extremos, a necessidade de adaptar é reconhecida
sem muito blá-blá-blá. Mesmo assim, mesmo sendo um conceito tão próximo das
coisas que posso entender, não havia sentido o pulso da adaptação com tanta
força como no quintal da Dona Lucia, descendente de indígenas desterrados e
filha do semi-árido.
Sou elite branca do sudeste do
Brasil. Isso significa que nos poucos dias em que me faltou água na vida, pude
estocar garrafas compradas no supermercado da esquina sem apertar o orçamento.
Significa também que, mesmo se a falta de água for pior no futuro,
provavelmente ainda terei renda e redes para acessar uma solução.
No semi-árido do Nordeste
brasileiro, uma das regiões mais desiguais do Brasil, onde a evaporação é três
vezes maior que a média pluviométrica (200-800mm/ano)[i] e onde a falta de água é
de meses ou anos, as perspectivas são outras. No caminho para o sítio de Dona
Lucia, o sítio Canga, passamos por terras secas, avermelhadas como se queimadas
pelo Sol, com pouco pasto, menos vacas e várias plantações de cactos. Olhando
pela janela do carro, lembrava da cifra que li em 2013 - a seca do ano anterior
havia matado 24% do rebanho em Pernambuco e 28% na Paraíba[ii], os homens estavam
migrando para os centros urbanos e as mulheres ganhavam o estigma das ‘viúvas
da seca’[iii]. Enquanto encaixava
esses dados na legenda da paisagem, apareceu a prova de tudo - três gados
mortos e uma dezena de urubus revoando os corpos. Acrescentei uma informação
nova à minha legenda – a seca segue e a população de urubus cresceu.
Chegamos ao sítio Canga. A casinha
no meio do terreno me lembrou a fazenda dos meus bisavôs, no interior do estado
do Rio de Janeiro – galinhas, varanda cheia de vasos esverdeados e um canteiro
plantado de vida ao redor dos 200 m2 da casa. Ali havia cores em nada parecidas
com as cores dos filmes que retratam o sertão nordestino.
Dona Lucia nos recebeu sorridente
e foi contando, cada vez mais expansiva, como mantinha tão verde as 482
espécies do seu sítio. Como a terra é muito seca, as plantas que ficam no solo
e sob Sol forte não crescem nem com reza e rega diárias. Já as plantas em potes
e vasos, florescem, porque os recipientes permitem maior retenção de água e
porque estão em locais sombreados. Dona Lucia tem também alguns segredos
tradicionais para deixar o solo rico e evitar pragas sem usar veneno, mas esses
não posso contar por aqui. Posso só dizer que é coisa de gente sábia, que
observa e entende a natureza.
Mas, mesmo com todo o conhecimento
tradicional disponível, nem um pé de repolho nasceria se não houvesse água. E
por isso que só há pouco tempo Dona Lucia colhe tanto. Há dois anos, ela
recebeu a segunda cisterna do seu terreno – uma cisterna calçadão. Este tipo de
tecnologia social permite a captura de água da chuva (quando há) e
armazenamento de até 52 mil litros em um equipamento que evita a
evapotranspiração. A água desta cisterna é usada ao longo dos meses de seca
para produção de alimentos, enquanto a água de uma cisterna menor, de 16 mil
litros, é direcionada para uso doméstico. Ambas chegaram até Dona Lucia por
meio do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), do Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS) e da Articulação do Semi-Árido (ASA), e foram
instaladas por mão-de-obra local. O programa promove capacitações, expansão do
uso da tecnologia e, o mais importante, organização comunitária para gestão da
água.
Dona Lucia é membro ativa da
organização local e, com muita postura, contou sobre a liderança que exerce.
Quase toda semana participa de reuniões e constantemente viaja em representação
da Articulação do Semi-Árido (ASA). Mas não foi sempre assim. Antes ela e o
marido viviam de cortar toco de madeira, em uma casa pequena e lutando pelo
alimento na mesa. Com a cisterna, veio a segurança hídrica e alimentar, o senso
de comunidade, a cidadania e a auto estima. O marido começou uma capacitação
técnica, virou construtor reconhecido de equipamento hídricos e aumentou a
renda familiar. Os dois conseguiram construir a casa do sítio Canga e mostram,
com as cores do jardim, que são capazes de conviver dignamente com a seca.
Toda essa história escutei sentada
a uma mesa cheia de bolos e sucos de frutas que Dona Lucia havia preparado com
os insumos do quintal. Quando a conversa acabou e antes de que fossemos embora,
nossa anfitriã fez um pedido – queria que assinassemos o livro de visitantes,
onde ela espera registrar o nome de todos que passarem por ali para conhecer os
milagres do semi-árido.
Saí do Sitio Canga encantada.
Tinha conhecido os olhos de quem se adapta. Pensei então nas viúvas do sertão e
no resto das mulheres dos semi-áridos do mundo. Será que elas também vão ter
acesso a meios, capacitação, organização e tecnologia para que se adaptem? E
será que adaptação vai ser suficiente? Ou vamos, os não tão vulneráveis, seguir
vivendo um estilo de vida intenso em emissões e moldando um futuro tão mais
quente e intenso em eventos climáticos extremos, que nem o jardim do sitio
Canga suportará?
Essas perguntas, as deixo para os que
vão se reunir este ano na COP21 e decidir as direções do nosso caminho. Deixo
também um desejo. Desejo que possam olhar nos olhos de quem se adapta. As
linhas de um acordo global ficam muito mais humanas depois disso.
*Este
texto foi escrito a partir de uma visita de campo a projetos de ASA –
Articulação do Semiárido, organizada no marco do encontro “Diálogos e
Convergências: Gestão da Água em Cenários de Estresse Hídrico”. O encontro
aconteceu em Pesqueira, Pernambuco, de 27 a 29 de maio de 2015 e foi organizado
por Fundación Avina, ASA e Caritas. O artigo foi publicado originalmente neste
blog em 30 de junho de 2015 e relata a visita ao Sitio Canga, de Dona Lucia, no
município de Alagoinha. Em 07 de julho foi publicado em http://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/29218-uma-historia-de-adaptacao-tres-perguntas-e-um-desejo/ .
[ii]Reportagem: http://economia.uol.com.br/agronegocio/noticias/redacao/2013/10/15/seca-fez-nordeste-perder-4-milhoes-de-animais-em-2012-diz-ibge.htm
Dados IBGE sobre produção
pecuária municipal 2012: “No Nordeste foi registrada a
maior queda (-4,5%), sendo as maiores em Pernambuco (-24,2%), Bahia (-3,9%),
Paraíba (-28,6%) e Rio Grande do Norte (-18,1%). Maranhão, Ceará e Piauí
registraram aumentos em seus efetivos de bovinos.” ftp://ftp.ibge.gov.br/Producao_Pecuaria/Producao_da_Pecuaria_Municipal/2012/ppm2012.pdf
[iii]
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,pior-seca-em-50-anos-leva-flagelo-ao-nordeste-imp-,958634
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