O estigma da graxa


Saio de Cusco esnobe. Foi aquela moeda que atirei ao chão. Rodopiou, rodopiou, e antes que parasse no chão, o menino da direita pegou.  E eu me fui.
Nenhum dos dois olhava para mim, tinham a mirada fixa no chão. As mãos sujas, os pés mal calçados e o olhar apagado. Crescem sem dinheiro em meio a um centro turístico cheio de discreta abundância. O-da-esquerda deveria ter 9 anos. Nariz escorrendo, calava e imitava o-da-direita. Foi esse, o-da-direita, quem me chamou enquanto caminhava pelas ruas de Cusco. Ofereceu engraxar minha bota surrada em troca de $1,00. Devia ter uns 12 a 13 anos de idade, e mais alguns de experiência.
Eu sempre achei a relação engraxate-engraxado o oconcur da desigualdade. Em geral, um homem velho, barrigudo e engravatado se senta no pedestal enquanto um vestido com sabe-se-lá-o-quê limpa seus sapatos. Algum resquício da escravidão, deve ser.
Mas, lá estava eu, deparada com o dilema. Se existe a profissão, se meu sapato está pedindo uma graxa, se engraxar pode gerar renda para outra pessoa – engraxar minhas botas seria arrogância ou pragmatismo? Seria pagar para quem precisa ou esbanjar que não preciso?
É certo que nesse caso eram duas crianças, o que de cara seria uma razão para não engraxar. Mas, nessa manhã, eu, turista mochileira, com alguns poucos soles sobrando no bolso e querendo me despir de falsas morais, achei por pragmatismo quebrar o mito. Aceitei a proposta.
O-da-direita me orientou a sentar no banco da praça. Chegou o-da-esquerda e colocaram dois pedaços de madeira apoiados no chão a minha frente para que eu posicionasse meus pés mais elevados. E com esse simples elevar de pernas, me tornei aquele velho barrigudo.
Tentei desviar o pensamento para fingir que aquilo não estava acontecendo. Pensei no pastel do almoço, nas lições de Aristóteles e no paquera do avião. Em vão. A cena era a mesma.
Sem que percebesse, o-da-direita interrompeu meu devaneio:
- Vou pintar seu sapato da mesma cor para que não pareça descolorado, tudo bem?
- Tudo bem - eu respondi. Era minha primeira vez como engraxada e o que ele recomendasse, eu aceitaria.
O-da-direita abriu um pote de tinta e começou a pintar. Perguntou outra vez se estava ok. Eu achei que se referia à tonalidade, e ainda que achasse que não estava de todo bom, disse que estava ótimo. O-da-esquerda então se pôs a pintar também.
Os pensamentos aleatórios não ganhavam força. A situação era paradigmática demais e desisti de ignorar. Comecei então a buscar desculpas – é só $1,00, vai ajudar os meninos. Fora isso, em cinco anos essa bota nunca viu uma graxa e é melhor engraxar com eles que comprar um tubo de graxa para usar uma vez e deixar no fundo da gaveta... Que bizarra cultura da culpa se instalou em mim!
A bota já estava toda pintada e o-da-direita me interrompeu outra vez:
- Com a pintura é outro preço.
- Como?
- Com a pintura é mais caro.
- Ahn?
- A pintura é um preço diferente da limpeza.
- O quê? Não pode ser. Isso está errado! Você não pode mudar um preço combinado!
- Sim, senhora. Eu perguntei se podia pintar, e a senhora disse que sim. E com a pintura é mais caro que só a limpeza.
- Mas você nunca falou sobre isso! Como eu iria saber? Isso está errado!
A bota estava pintada. E eu, furiosa. Sentia como se tivesse assinado um contrato com letrinhas minúsculas que te fidelizam ou te impõem taxas inadvertidamente. Ele mudou as regras do jogo, ou eu joguei sem verificar as regras. E agora, o não dito estava feito.
- Isso é um roubo, o que vocês estão fazendo!
A essa altura, eu já falava em outra altura. O-da-direita olhava cada vez mais fundo no chão, como se se apoiasse na nossa diferença de altitude para justificar e seguir.
- São $5,00, senhora, não é muito.
- Sim, é muito. Principalmente porque a forma como que estão fazendo está errada. É um roubo.
- Não, não é um roubo, senhora. Roubo seria se eu levasse a sua mochila.
Ele estava certo, e errado. Era um roubo nas regras do jogo. Não me tomou nada a força, mas aproveitou das entrelinhas. Ao final, eu iria pagar voluntariamente. E foi justamente nesse ponto que ele chegou:
- Você está com as botas pintadas e vai sair caminhando sem pagar por isso?
Minhas pernas já saltavam do banco, meu corpo se apropriava da diferença de altura e minha boca.... Minha boca, berrou. Em troca de $5,00 eu levaria a bota pintada, mas não a sensação de enganada. Falei, vomitei, berrei em praça pública. Não eram os $5,00, era aquela velha sensação de injustiça. Dele contra mim.
E assim eu, que achava que quebrava mitos, joguei a moeda de $5,00 no chão e me fui. Igual a todos os outros.

2 comentários:

Vera Marion Rosenthal disse...

Paula, você é uma p... cronista!!! Sempre gostei do que você escrevia no blog da família, mas não sabia que era tão boa! Precisa utilizar mais esse dom. Parabéns, querida.
Tia Verinha

Anônimo disse...

Quando eu tinha 12 anos engraxava sapato. Aí vieram os tênis e os sapatos sairam de moda. Aos 15, vendia picolé nas praias.
:)